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Centenário de Miguel Torga
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Miguel Torga, pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha, nasceu a 12 de Agosto de 1907 em S. Martinho de Anta e faleceu em 1995. É em 1928, quando ingressa na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, que publica o seu primeiro livro de poesia, Ansiedade . A partir de 1941 publica o primeiro volume da obra Diário, que termina em 1993. Da sua vastíssima obra literária fazem também parte Os Bichos ou Pão Ázimo. O centenário de Miguel Torga foi comemorado na sua terra "com a apresentação de um selo, exposições de pintura e a leitura de 100 poemas" (RTP). UM POEMA Não tenhas medo, ouve: É um poema. Um misto de oração e de feitiço... Sem qualquer compromisso, Ouve-o atentamente, De coração lavado. Poderás decorá-lo E rezá-lo Ao deitar, Ao levantar; Ou nas restantes horas de tristeza. Na segura certeza De que mal não te faz. E pode acontecer que te dê paz... (Diário XIII)
Metamorfose
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Ao pé dos cardos sobre a areia fina que o vento a pouco e pouco amontoara contra o seu corpo (mal se distinguia tal como as plantas entre a areia arfando) um deus dormia. Há quanto tempo? Há quanto? E um deus ou deusa? Quantos sóis e chuvas, quantos luares nas águas ou nas nuvens, tisnado haviam essa pele tão lisa em que a penugem tinha areia esparsa? Negros cabelos se espalhavam onde nos braços recruzados se escondia o rosto. E os olhos? Abertos ou fechados? Verdes ou castanhos no breve espaço em que o seu bafo ardia? Mas respirava? Ou só uma luz difusa se demorava no seu dorso ondeante que de tão nu e antigo se vestia da confiada ausência em que dormia? Mas dormiria? As pernas estendidas, com um pé sobre outro pé e os calcanhares um pouco soerguidos na lembrança de asas; as nádegas suaves, as espáduas curvas e na tão leve sombra das axilas adivinhados pêlos... Deus ou deusa? Há quanto tempo ali dormia? Há quanto? Ou não dormia? Ou não estaria ali? Ao pé dos cardos, junto à solidão qu...
Poema da Auto-estrada
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Voando vai para a praia Leonor na estrada preta. Vai na brasa, de lambreta. Leva calções de pirata, vermelho de alizarina, modelando a coxa fina, de impaciente nervura. como guache lustroso, amarelo de idantreno, blusinha de terileno desfraldada na cintura. Fuge, fuge, Leonoreta: Vai na brasa, de lambreta. Agarrada ao companheiro na volúpia da escapada pincha no banco traseiro em cada volta da estrada. Grita de medo fingido, que o receio não é com ela, mas por amor e cautela abraça-o pela cintura. Vai ditosa e bem segura. Com um rasgão na paisagem corta a lambreta afiada, engole as bermas da estrada e a rumorosa folhagem. Urrando, estremece a terra, bramir de rinoceronte, enfia pelo horizonte como um punhal que se enterra. Tudo foge à sua volta, o céu, as nuvens, as casas, e com os bramidos que solta, lembra um demónio com asas. Na confusão dos sentidos já nem percebe Leonor se o que lhe chega aos ouvidos são ecos de amor perdidos se os rugidos do motor. Fuge, fuge, Leonoreta Vai na br...
Epitáfio para um poeta
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As asas não lhe cabem no caixão! A farpela de luto não condiz Com seu ar grave, mas, enfim, feliz; A gravata e o calçado também não. Ponham-no fora e dispam-lhe a farpela! Descalcem-lhe os sapatos de verniz! Nao vêem que ele, nu, faz mais figura, Como uma pedra, ou uma estrela? Pois atirem-no assim à terra dura, Ser-lhe-á conforto: Deixem-no respirar ao menos morto! José Régio
Eu
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Florbela Espanca Eu sou a que no mundo anda perdida, Eu sou a que na vida não tem norte, Sou a irmã do Sonho, e desta sorte Sou a crucificada ... a dolorida ... Sombra de névoa tênue e esvaecida, E que o destino amargo, triste e forte, Impele brutalmente para a morte! Alma de luto sempre incompreendida!... Sou aquela que passa e ninguém vê... Sou a que chamam triste sem o ser... Sou a que chora sem saber porquê... Sou talvez a visão que Alguém sonhou, Alguém que veio ao mundo pra me ver, E que nunca na vida me encontrou!
Segredo
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Esta noite morri muitas vezes, à espera de um sonho que viesse de repente e às escuras dançasse com a minha alma enquanto fosses tu a conduzir o seu ritmo assombrado nas trevas do corpo, toda a espiral das horas que se erguessem no poço dos sentidos. Quem és tu, promessa imaginária que me ensina a decifrar as intenções do vento, a música das chuvas na janela sob o frio de fevereiro? O amor ofereceu-me o teu rosto absoluto, projectou os teus olhos no meu céu e segreda-me agora uma palavra: o teu nome-essa última fala da última estrela quase a morrer pouco a pouco embebida no meu próprio sangue e o meu sangue à procura do teu coração. Fernando Pinto do Amaral, Às Cegas